domingo, 31 de julho de 2011

Saiba mais sobre a Lei 10.639

Após algumas reuniões com capoeiristas em Macapá, o assunto em pauta era sempre a Lei 10.639...portanto, abaixo segue um artigo muito interessante tratando da referida lei.
Leia e deixe seu comentário.


ALFORRIA CURRICULAR ATRAVÉS DA LEI 10.639

Bem vinda lei 10.639. Ainda que, no mínimo com um século de atraso, porém..., bem vinda. Sabemos dos desafios existentes que certamente farão parte dessa nova etapa, o que é comum quando tratamos de questões de tal complexidade. Não será por isso que devemos nos debruçar passivamente sobre os entraves postos ao longo de todos esses anos, inibindo qualquer possibilidade de mudança. Se não houver um início, nunca haverá mudanças. Por que esse privilégio para com os afros descendentes questionam uns? Não estaríamos criando exceções? Bradam outros. Não. A lei buscará democratizar - sem discursos panfletários - um dos maiores bens que um povo pode ter. O acesso a sua verdadeira história.

Diferente dos jesuítas que, por delegação do Rei de Portugal, encarregaram-se das iniciativas educacionais junto aos índios através das aulas régias, incutindo somente a cultura européia, haveremos de valorizar - conforme a lei 10.639 apregoa - no novo curriculum, a Cultura e História afro-brasileira. Naquela, a educação de cima pra baixo, elitizante e segregadora ditada pelos monarcas, ignorava negros e índios, concebendo-os como hereges, sem alma, sem história e amorfos. A temporalidade dos fatos atuais não permite que continuemos a conceber tais posições. Chega da elite, através das elites, educar para a elite.

Independente de revanchismos e excetuando a causa indígena, não podemos nos deixar confundir com situações localizadas. Diferenças existem e, grande parte das que assolam o século atual são conseqüências de um modelo econômico excludente. A reivindicação afro se apóia sobre o pilar de sua contextualização na base histórica nacional. Imigrantes europeus no Brasil tiveram sua inserção de forma diferenciada. Enclausurados em suas comunidades, muitos atualmente ainda mantém seus costumes, quer seja através da indumentária, do idioma e da não miscigenação. Ademais, não foram violados (pela força física), a virem para o Brasil. Alguns europeus receberam inclusive, incentivos para ocupar partes do território brasileiro. Diferente dos negros açoitados, que vieram como mercadoria para os trabalhos forçados e, após a chamada abolição da escravatura foram largados, desprovidos dos meios de produção, servindo então de presa fácil ao novo patrão, representado pelo mercado de trabalho.

Atentemos ainda nessa discussão a outros argumentos que se propõe a abordar (junto à questão do afro-descendentes), a outras desigualdades existentes. Chamam a atenção que deveria constar na pauta, reivindicações de outras minorias que também sofrem de racismos, como: asiáticos, judeus, árabes, índios e mulheres. Ora, se enveredarmos para exclusivismos, iremos, sem dúvida, aumentar essa lista indefinidamente. Gays, prostitutas, nordestinos, sem tetos, sem terra, sem emprego, analfabetos, mulheres, mulheres negras, ciganos, idosos, etc. O engano está em confundir o contexto histórico sócio-cultural, com a lógica pontual / localizada de interesses de grupos.

A Lei 10.639 de 09 de janeiro do corrente ano sancionada pelo presidente Luis Inácio Lula da Silva alterou a Lei de Diretrizes e Bases (LDB). A partir de então, tornou-se obrigatório a inclusão, no currículo das escolas de ensino fundamental e médio (públicas e privadas), o estudo da História e Cultura Afro-brasileira. Busca-se com isso, resgatar a contribuição da raça negra nas áreas sócio / econômico, política e cultural no cenário brasileiro. A lei propõe ainda, que os calendários escolares incluam o dia 20 de novembro como Dia Nacional da Consciência Negra.

É certo que, o primeiro e mais importante passo foi dado, pois, é através dos estabelecimentos de ensino - e não haveria melhor lugar para isso ocorrer - que se poderá enfim, abordar de forma didático - pedagógica todo um processo histórico cultural que envolve a presença da população afro em solo brasileiro. Será nos bancos escolares, a partir dos primeiros anos de vida que o aluno poderá tomar contato com uma história até então não contada. Ou melhor, contada pelo outro. Contada, porém, de forma deturpada, caricaturizada, omissa, vilipendiada, enfim, descolada da sua importância na formação da sociedade brasileira.

Muitos questionam e duvidam sobre as possibilidades da lei vingar, apregoando observações diversas que, num primeiro momento, parecem servir como entraves às mudanças propostas pela referida lei. Não sabemos até que ponto tais premonições podem se confirmar, uma vez que vem impregnadas de arcaísmos e cargas ideológicas conservadoras de um discurso oficial que percola os setores sociais ao longo de mais de um século de dominação. O que parece ser muito importante a partir da promulgação da lei é, principalmente, a existência - agora oficial - da mesma. A sua ausência, certamente contribuiria para que mantivéssemo-nos sem as mínimas perspectivas de reivindicações, o que vinha ocorrendo até então. Continuaríamos a (con) viver com a sombria desfaçatez européia envolvendo os compêndios escolares da sociedade brasileira e, mais nocivamente, continuar mantendo a população afro na mesma condição de subserviência e baixa estima humana, em todos os sentidos.

Os argumentos utilizados sobre os possíveis entraves que inibirão o bom funcionamento da lei parecem não proceder. Parecem tendenciosos e objetivam sim, (talvez inconscientemente), calar vozes, tentando - através de argumentos falaciosos - mascarar e ignorar um passado real de fatos aviltantes e mordazes, criados no continente africano e importados posteriormente para o Brasil. Não procedem porque, ignora em suas análises, a temporalidade dos fatos. Não procedem porque são sorrateiramente preconceituosos. Não procedem porque propõe a continuidade de um silêncio corrosivo. Isso por que? Porque a libertação do inconsciente e fortalecimento do consciente incomoda. A mudança incomoda, principalmente àqueles que amalgamados e já acostumados as atrocidades do cotidiano, locupletam-se do sistema e sentem que questionamentos dessa monta tendem a alterar posições.

Em recente estudo sobre as condições de vida de brancos e afro-descendentes nos setores ocupacionais e educacionais em bairros da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, BRANDÃO (2003) [1] , aponta grandes diferenças com relação à infra-estrutura urbana (água, esgoto, coleta de lixo e iluminação pública), em áreas habitadas por brancos e afro-descendentes. No setor educacional também ficou flagrante a desigualdade entre ambos, quando salta aos olhos inclusive, as disparidades existentes (para pior), nas diversas faixas etárias da população afro. Ainda no setor ocupacional, os afros-descendentes voltam a apresentar um percentual muito maior de chefes de família exercendo atividades em condições subumanas, precárias e subempregos. Nesse sentido observa o autor que, mesmo num espaço com a presença de brancos e afro-descendentes, esses últimos continuam a herdar as piores condições de sobrevivência.

O estudo remete a constatação de uma triste realidade em que, mesmo as mais difíceis condições de pobreza, não promovem uma completa homogeneização sócio-econômica entre brancos e afro-descendentes. Afirma o autor a impossibilidade de reduzirmos a questão racial no Brasil somente a uma questão de classe social. Os resultados mostraram nitidamente que, as políticas universais que vem ocorrendo, direcionadas à população pobre, apesar de muito bem aceitas, ainda não resolverão os graves problemas de segregação existentes, pois, mesmo inseridos num mesmo lócus (brancos e afro), as desigualdades continuam existindo e mais, tornam-se mais latentes nos afro-descendentes.

No setor educacional, CARNEIRO (2003), aponta a piora na qualidade do ensino nos últimos anos, de acordo com estudos realizados pelo Ministério da Educação e Cultura (MEC). Mostra-nos que tal queda, entre os anos de 1995 e 2000, atingiu com maior impacto os estudantes negros, quer seja em estabelecimentos públicos quanto nos privados. Avaliações posteriores demonstraram as diferenças existentes entre alunos afros e brancos, em termos de aproveitamento escolar. De acordo com a pesquisadora, entre os principais motivos das diferenças existentes, destacam-se os seguintes: má qualidade do ensino; escassez de repertório cultural das famílias negras, em geral, pobres ou abaixo da linha de pobreza e; sobretudo, o racismo presente no cotidiano escolar que perpetua um tratamento desigual, promovendo o esmagamento psicológico dos alunos negros, rebaixando as suas habilidades cognitivas e impactando negativamente o seu desempenho escolar.

Várias são as situações que enriquecem o cotidiano de exemplos, levando os afros-descendentes à condição de encarcerados em um isolamento refinado e sutil imposto pela senzala moderna. Mais nocivo ainda vem sendo essa pretensa democracia cultural imposta pelos donos do discurso oficial, que ainda insistem em querer continuar fazer-nos acreditar que estamos iguais. Não, não estamos iguais. Nesse sentido e, somente nesse, a lei já passa a se sustentar como um todo. Mostrará na prática, sua importância para as novas gerações quando, dentro de alguns anos tiver criado nos alunos, condições para reflexões. Não se trata de criar histórias alternativas, como pode parecer. A absorção conteudesca se fará em dois momentos cruciais: o cognitivo e o afetivo. Trata-se - á de (re) compor historicamente, uma lacuna abissal, ignorada tendenciosamente pelas elites brasileiras. Alias, nessa reflexão, RIBEIRO (1997, apud DOWBOR, 1998, p.8), entende que,

“Nada é mais continuado, tampouco é tão permanente, ao longo desses cinco séculos, do que essa classe dirigente exógena e infiel ao seu povo... Tudo, nos séculos transformou-se incessantemente. Só ela, a classe dirigente, permaneceu igual a si mesma, exercendo sua interminável hegemonia... Hoje seu desígnio é forçar-nos a à marginalidade na civilização que está emergindo”.
Para recompor o imenso vácuo criado pela classe dirigente brasileira, somente através de políticas que comecem a valorizar o ser como parte integrante de um processo. Enquanto isso não ocorrer, será impossível criar caminhos que possam integrar os afros, ao contexto social brasileiro. Paliativos não mais sustentam a realidade. O sentimento de pertença cidadã ainda se encontra muito insipiente no consciente da população afro-descendente. Resgatar é muito pouco. É preciso mesmo construir em pleno século XXI, um invólucro de situações/ oportunidades concretas, que possam consolidar no imaginário da população afro-descentente, não somente o sentimento, mas a certeza da sua inclusão social. Também economicamente, mas ainda mais sócio/ histórico e culturalmente, se reconhecendo - os afros descendentes - como sujeitos do processo.

É praticamente impossível - conforme sugerido por alguns - ensinar nas nossas escolas que o racismo é errado. Não fica, não pega, não cola. Será uma imposição oficial, de cima pra baixo e sem nenhum respaldo. Aí sim, cabe perguntarmo-nos sobre, quem irá ensinar ao outro, como não ser/ ter racis (ta) (mo). Estaremos incursionando, mais uma vez, pela via da imposição lacrimosa, sofrível e pior ainda, mais uma vez pela porta dos fundos.

No contexto brasileiro, evocamos o papel que a educação pode assumir, através de discussões voltadas à valorização e esclarecimento, não somente do patrimônio (histórico-cultural, arquitetônico, ambiental, etc), mais ainda, sobre a importância do significado que a cidadania coletiva pode ter na busca na valorização do homem. Cidadania essa que só pode ser construída, de forma gradativa em cada dia de vida dos alunos. PENTEADO (1994 apud ARAUJO, 2003) aponta para o entendimento diferenciado de alguns, chamando a atenção que, diferente da cidadania representativa atual, proposta por determinados grupos interessados em manter o status quo, se faz necessária a presença de uma cidadania participativa, onde toda a sociedade esteja incluída. Essa pertença cidadã só será possível pela construção do conhecimento, busca da veracidade dos fatos, origem e interesses envolvidos e não somente nos projetos políticos pedagógicos, que variam de propósitos e estratégias nos estabelecimentos de ensino.

As políticas corretivas ajudam muito, porém, não reúnem condições de criar nessa imensa geração afro-descendente, bases de sustentação do conhecimento do seu passado para a valorização do presente. Somente através da construção do conhecimento, de suas raízes, seu histórico e sua contribuição na construção da nação brasileira, poderão os afros, enfim, construírem um sentimento de auto - estima. Ao contrário, estarão sempre na condição de reféns. Por isso a importância de se apostar na construção, via curriculum ,de uma nova base de sustentação afro-cidadã.

Faltam professores preparados, questionam uns. Ora, temos que começar a prepará-los. Para reduzirmos as disparidades existentes, temos que investir nessa empreitada e, não existe caminho mais sólido e verdadeiro que o educacional. Será um projeto de curto e médio prazo e, com certeza, não mais extenso que a implantação da Lei de Diretrizes e Bases (LDB). Afinal, dentro de, no máximo quatro anos, poderemos ter uma primeira geração de educadores aptos a incorporarem no cotidiano escolar, a cultura afro.

Como medida emergencial deverão constar nos projetos políticos pedagógicos das escolas uma discussão acerca dos conteúdos sobre cultura afro. Tal como foram sugeridos - entre outros - os temas transversais, os conteúdos referentes à cultura afro-brasileira poderão fazer parte dos programas e estratégias desenvolvidos em cada unidade escolar. Conforme apontado pela LDB, todo e qualquer conteúdo que valorize a identidade cultural sinaliza como forma de reconhecimento e afirmação da cidadania.

A miscigenação (racial e cultural) presente nos estabelecimentos de ensino já vem permitindo uma prática mais democrática e igualitária no reconhecimento da heterogeneidade brasileira. Sendo assim, não há o que temer quanto à ausência de profissionais formados exclusivamente para desenvolverem temas referentes, visto que, as desigualdades e injustiças, práticas racistas, discriminações e outros, fazem parte do cotidiano brasileiro, bastante perceptíveis na ordem do dia. Cabe ao governo, a partir de então, acionar as universidades na inclusão como parte integrante do currículo obrigatório - o mais rápido possível - em seus planos de trabalho, módulos ou disciplinas específicas sobre o tema. Certamente, profissionais desejosos em divulgar diversos trabalhos já desenvolvidos nas dependências dessas universidades, terão plenas condições de formarem outros para atuarem na construção de uma nova prática mais justa, igualitária e cidadã, pela via da educação.


JOEL DE ARAUJO* & PATRYCIA DE RESENDE CARDOSO**
* Docente da Universidade Federal Fluminense/ UFF. Doutorando em Educação / UFRJ. Coordenador do Pré - Vestibular comunitário prof. Milton Santos;
**Docente das Redes Municipal e Estadual de Ensino - RJ. Mestre em Educação /UFF

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